segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Minha antologia da poesia caboverdiana

Resolvi colocar no blogue a antologia da poesia caboverdiana que a gente leu neste sábado passado, assim de repente alguém mais informado que eu pode deixar comentários interessantes e os que não puderam participar podem curtir também.
Eugénio Tavares
1861-1930. Nasceu na Brava (Cabo Verde). Autodidacta, funcionário publico, jornalista e polemista. Dramaturgo, ficcionista e poeta. Paradigma da crioulidade, autor de inúmeras mornas.
***
Canção ao Mar
(Mar Eterno)

Oh mar eterno sem fundo
Sem fim
Oh mar de túrbidas vagas
Oh mar!
De ti e das bocas do mundo
a mim
Só me vem dores e pragas
Oh mar!
Que mal te fiz oh mar, oh mar
Que ao ver-me pões-te a arfar, a arfar
Quebrando as ondas tuas
De encontro às rochas nuas
Suspende a zanga um momento
Escuta
A voz do meu sofrimento
Na luta
Que o amor acende em meu peito
Desfeito
De tanto amar e penar
Oh mar!
Que até parece oh mar, oh mar
Um coração a arfar, a arfar
Em ondas pelas fráguas
Quebrando as suas máguas
Dá-me notícias do meu amor,
Amor
Que um dia os ventos do céu
Oh dor!
Nos seus braços furiosos
Levaram
E ao meu sorriso, invejosos,
Roubaram
Não mais voltou ao lar, ao lar
Não mais o vi oh mar, oh mar
Mar fria sepultura
Desta minha alma escura
Roubaste-me a luz querida
Do amor,
E me deixaste sem vida
No horror
Oh alma da tempestade
Amansa,
Não me leves a saudade
E a esperança
Que esta saudade, é quem, é quem
Me ampara tão fiel, fiel
É como a doce mãe
Suavíssima e cruel
Mas máguas desta aflição
Que agita
Meu infeliz coração,
Bendita,
Bendita seja a esperança
Que ainda
Lá me promete a bonança
Tão linda!
***
Aguinaldo Fonseca
Cabo Verde (1922)
Mãe negra
A mãe negra embala o filho.
Canta a remota canção
Que seus avós já cantavam
Em noites sem madrugada.
Canta, canta para o céu
Tão estrelado e festivo.
É para o céu que ela canta,
Que o céu
Às vezes também é negro.
No céu
Tão estrelado e festivo
Não há branco, não há preto,
Não há vermelho e amarelo.
- Todos são anjos e santos
Guardados por mãos divinas.
A mãe negra não tem casa
Nem carinhos de ninguém...
A mãe negra é triste, triste,
E tem um filho nos braços...
Mas olha o céu estrelado
E de repente sorri.
Parece-lhe que cada estrela
É uma mão acenando
Com simpatia e saudade...
***
Corsino Fortes
Corsino António Fortes (n. São Vicente, Cabo Verde, 1933), escritor e político caboverdiano. É licenciado em Direito, pela Universidade de Lisboa (1966). Integrou vários governos na república de Cabo Verde, país de que foi Embaixador em Portugal. Presidiu à Associação dos Escritores de Cabo Verde (2003/06). Autor de obras como Pão e Fonema (1974) ou Árvore e Tambor (1986), a sua obra expressa uma nova consciência da realidade cabo-verdiana e uma nova leitura da tradição cultural daquele arquipélago.

Ilha
Sol & semente: raiz & relâmpago
Tambor de som
Que floresce
A cabeça calva de Deus
***

De Boca Concêntrica Na Roda Do Sol
Depois da hora zero
E da mensagem povo no tambor da ilha
Todas as coisas ficaram públicas na boca da república
As rochas gritaram árvores no peito das crianças
O sangue perto das raízes
E a seiva não longe do coração
E
Os homens que nasceram da
Estrela da manhã
Assim foram
Árvore & Tambor pela alvorada
Plantar no lábio da tua porta
África
mais uma espiga mais um livro mais uma roda
Que
Do coração da revolta
A Pátria que nasce
Toda a semente é fraternidade que sangue
A espingarda que atinge o topo da colina
De cavilha & coronha
partida partidas
E dobra a espinha
como enxada entre duas ilha
E fuma vigilante
o seu cachimbo de paz
Não é um mutilado de guerra
É raiz & esfera no seu tempo & modo
De pouca semente
E muita luta
***
Arménio Vieira
Arménio Adroaldo Vieira e Silva é um jornalista e escritor da língua portuguesa , nasceu na cidade da Praia, em Santiago de Cabo Verde, em 24 de janeiro de 1941.
Elemento activo da geração de 1960, colaborou em SELÓ - folha dos novíssimos, Boletim de Cabo Verde, revista Vértice (Coimbra), Raízes, Ponto & Vírgula, Fragmentos, Sopinha de Alfabeto, entre outras publicações.
Foi redactor do extinto jornal Voz di Povo.
***
Lisboa - 1971
A Ovídio Martins e Osvaldo Osório
Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar.
Eis-nos enfim transidos e quase perdidos
no meio de guardas e aviões da Portela.
Em verdade éramos o gado mais pobre
d'África trazido àquele lugar
e como folhas varridas pela vassoura do vento
nossos paramentos de presunção e de casta.
E quando mais tarde surpreendemos o espanto
da mulher que vendia maçãs
e queria saber donde... ao que vínhamos
descobrimos o logro a circular no coração do Império.
Porém o desencanto, que desce ao peito
e trepa a montanha,
necessita da levedura que o tempo fornece.
E num caminhão, por entre caixotes e resquícios da véspera,
fomos seguindo nosso destino
naquela manhã friorenta e molhada por chuviscos d'inverno
***
Canto Final Final Ou Agonia Duma Noite Infecunda
Como a flor cortada rente e desfolhada
ou os olhos vazados da criança
e o seu fio de pranto tênue e impotente
assim a noite caminha com os astros todos em vertigem
até que se atinge o ponto da mudez
a pesada mó triturando a sílaba
a garganta com as cordas dilaceradas
e uma lâmina ácida e pontiaguda enterrada ao nível da carótida

Entenda-se isto como noite e o seu transe derradeiro
tanto assim que a flor desfeita
não embala o coração do poeta
oh não
porque a flor defunta
se voa
não sobe nunca
e só dura
o espaço breve duma nota
Assim o canto se detém imóvel
como se da flauta
falhando súbito
na boca do poeta
ficasse o hiato
ou a saliva
de um tempo devassado por insectos cor de cinza
A voz suspensa e negada
cede a vez à letra amorfa
inscrita no silêncio
com seu peso
de chumbo e olvido
acaba o poema
e um ponto final selando tudo.
***
Ser tigre
O tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo,
infra-sémen.
Não tem forma,
é quase nada, parece morto.
Porém existe,
por isso espera.

Epopéia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,

Ele seráquando for tempo disso.
***
Luís Romano de Madeira Melo
Luís Romano de Madeira Melo (Santo Antão, Cabo Verde, 10 de Junho de 1922) é um poeta, novelista e folclorista bilingue, com trabalhos em português e em crioulo cabo-verdiano da Santo Antão, idioma que prefere designar por "língua cabo-verdiana". Luís Romano de Madeira Melo vive no Brasil desde 1962.
***

Símbolo
O formato daquele berço foi um símbolo
O menino em miragens impossíveis
dormia sonhando com navios de papel
enquanto eu contemplava
a cismar,
o conjunto daquela harmonia
sumindo-se na linha do mar.

Navio-berço de menino crioulo
navio-guia que ficou sem ir
"navio idêntico ao navio da nossa derrota parada".
***

Vida
A crioula que meus olhos beijaram a medo
predeu-se na confusão de um porto francês

Ela sorria continuamente, erguendo no seu riso uma cançaão extraordinária.

Não foi um romance de amor
nem mesmo um pequeno segredo entre ambos.

Somente, quando Ela falava ao pé de mim, eu sentia:
um aprazível devaneio
pela maravilha escultural duma Mulher Perfeita.

Depois,
a Vida separando Nós-Dois
a confusão, os ruidos, os braços agitando-se
e o vapor levando para outros mares,
outros portos,
a graça, o mistério, o perfume e os cantares
da crioula que meus olhos beijaram a medo
no tombadilho daquele vapor francês.
***
Ovídio Martins
Ovídio Martins é um escritor e jornalista Caboverdiano.
Nasceu em São Vicente (17.9.1928), Cabo Verde. Poeta caboverdiano, jornalista, co-fundador do Suplemento Cultural (1958, São Vicente). O seu envolvimento em atividades de promoção da independência valeram-lhe a pena a prisão e o exílio nos Países Baixos.

***
Para Além do Desespero
Para além do desespero...
Apenas a criança
Numa paisagem de nada

A sua boca não ri
(Nunca soube
que uma boca de criança
foi feita para rir)

Os seus olhos não choram
(Não há lágrimas para além do desespero)

Os seus pés
não correm atrás de borboletas
e as suas mãos
não abrem covas na areia
(Não há borboletas nem areia
numa paisagem de nada).

Para além do desespero...
Também minha revolta
com cadeados nos pulsos.
***

Minha Dor
Sonho com a manhã clara
de teus seios
e rendo-me humilde
diante da verdade
do teu corpo nu
Idear-te
e ofertar-me caricias proibidas
ir beber feito outro
na fonte longinqua
da minha dor
E minha dor é teu sillencio!...
***
Sérgio Frusoni
Sérgio Frusoni (Mindelo, 10 de Agosto de 1901 — Lisboa, 29 de Maio de 1975) foi um poeta cabo-verdiano, filho de pais italianos.
Com 24 anos de idade, começou a trabalhar na Western Telegraph Company, tendo mais tarde mudado para a Italcable. Em 1947, passou a gerir o "Café Sport" no Mindelo, onde apresentava poemas e pequenos contos em crioulo.
Na década de 1960 liderou o grupo de teatro "Teatro do Castilho" no Mindelo. Durante anos, foi locutor na Rádio Barlavento, onde dirigia e apresentava o programa "Mosaico Mindelense", em crioulo.
Frusoni escreveu muitos contos e poemas em crioulo de São Vicente (Criol d' Soncente). É muito conhecido no arquipélago de Cabo Verde, mas é praticamente desconhecido no estrangeiro. No final da sua vida, Sérgio Frusoni foi também pintor.
Para Corsino Fortes (Paralelo14: quinta-feira, 07 julho 2005), Sergio Frusoni "colocou a mulher no centro da sua poesia, apresentando-a como a fiel depositária da perpetuação da espécie e dona do condão de resolver todos os problemas, mas sempre com dignidade".
***
Minha Terra
Minha terra, que parecia-me outrora
Grande como um mundo,
e mais tarde, como um continente,
não é mais agora,
do que este cantinho
perdido neste mar profundo:
Sanvicente!

Mas aqui é que nasci
aqui é que me criei!
Este mar, este céu, este chão,
è que amoldaram a minha carne e iluminaran minha vida!
Aqui è que hei-de morrer!

E quando eu não fôr mais do que uma poeira,
ainda hei-de continuar a viver
na cor deste mar;
na luz deste céu;
na boca de uma pequena qualquer
a namorar o seu “crechêu”…
***
Meu Coraçao
Meu coração è dum rapaz de vinte anos:
ri, chora, consoante ele quer.
Se lhe dá para cantar, é italiano,
por aquele sangue que herdou quando nasci:

Se lhe dá para chorar, é caboverdeano:
Sempre com sentido no pobre e nos que podem,
sempre pronto a cair num qualquer engano,
levado pela sua confiança e boa fé.

Não tem sossego, não tem proveito!
De vez em quando pula-me no peito:
Ponho-me a escrever e… pronto, ei-lo contente!...

Mas no outro dia veio com atrevimentos,
e como o chamasse à ordem e ao respeito,
virou-se para mim e disse: “VELHO RABUJENTO”!...
***
(São Vicente, 1926) é uma escritora e poetisa Caboverdiana de língua portuguesa.
***

Barcos
"Nha terra é quel piquinino
É São Vicente é que di meu"

Nas praias
Da minha infância
Morrem barcos
Desmantelados.

Fantasmas
De pescadores
Contrabandistas
Desaparecidos
Em qualquer vaga
Nem eu sei onde.

E eu sou a mesma
Tenho dez anos
Brinco na areia
Empunho os remos...
Canto e sorrio...
A embarcação:
Para o mar!
É para o mar!...

E o pobre barco
O barco triste
Cansado e frio
Não se moveu...

1 comentário:

Grupo de Leitura disse...

A que eu pessoalmente mais gostei é a do Aguinaldo Fonseca!